
A reparação da humanidade realizada por Jesus Cristo na Cruz é de uma grande profundidade para todo católico, e, para compreender essa profundidade, é necessário voltarmos a muitos anos antes de Cristo, na história do povo de Israel no Antigo Testamento.
Por volta de mil e trezentos anos a.C., quando o povo de Israel estava no deserto do Sinai, após a libertação do Egito, Deus ordenou que, quando o povo ou alguém do povo cometesse algum pecado, era preciso realizar sacrifícios de alguns animais (cordeiros, ovelhas, carneiros, pombas etc.) como forma de expiação e lembrete do mal cometido contra Deus. (Levítico 4 e 5)
Por que era necessário realizar essa expiação/reparação do pecado cometido? Para responder a essa pergunta, podemos fazer um paralelo nas relações humanas quando cometemos um mal a outra pessoa. Por exemplo, quando cometemos um erro no trânsito e batemos no carro de outra pessoa, por mais que seja de bom grado você pedir desculpas para a pessoa, apenas isso não basta; é necessária uma reparação pelos danos causados, pagamento pelo conserto do carro, pagamento dos custos médicos caso a pessoa tenha se ferido, e muitas vezes até uma indenização pelos dias não trabalhados. Quando cometemos um pecado que ofende e nos afasta de Deus, funciona de forma semelhante.
Para nos ajudar nesse entendimento, temos São Anselmo da Cantuária, que escreve o argumento Cur Deus Homo (Por que Deus se fez homem?). Onde ele nos explica bem a satisfação/reparação dos nossos pecados por Jesus. Em um trecho do argumento, ele nos ajuda a explicar o seguinte:
Não é suficiente, porém, devolver o que lhe foi tirado, pois pela injúria feita sempre deve-se devolver mais do que se tirou. É assim que não é suficiente para quem lesa a saúde de outro que lhe devolva a saúde, pois deve também, pela dor impingida, recompensar-lhe com algo mais. Do mesmo modo não é suficiente para quem viola a honra de alguém que lhe devolva a honra, pois deve também, de acordo com o dano que lhe causou, restituir-lhe algo a mais que seja de seu agrado.
Óbvio que Deus não se ofende da mesma forma como o homem. Deus não sofre limitações ou prejuízos como as criaturas, mas o pecado é uma revolta contra a Sua Santidade e contra a ordem que Ele estabeleceu. Por isso o pecado exige reparação: não porque Deus seja ‘lesado’ como uma criatura, mas porque a mal causado pelo pecado desordena a relação do homem com Deus Santo e Infinita Verdade. E, mais importante, no fundo da nossa alma, nós sabemos que, quando cometemos um pecado, nós fazemos mal a nós mesmos, afastando-nos de Deus, e nós mesmos já temos a necessidade de reparar este mal feito. No exemplo do acidente de trânsito, no fundo da nossa consciência, nós sabemos que fizemos algo errado e que temos a necessidade de reparar o mal que fizemos ao outro.
Por isso Deus ordenou ao povo de Israel realizar esses sacrifícios de animais como uma forma de reparação e lembrete do mal cometido pelos pecados. Entretanto, o pecado é uma ofensa a Deus Santo, Infinito e Criador de todas as coisas. Apesar de ser de bom grado oferecer esses sacrifícios, eles ainda eram imperfeitos para reparar o pecado.
Por que então Deus ordenou aos israelitas realizarem essa reparação imperfeita? Primeiro, os sacrifícios do Templo não consistiam em um fim em si mesmos, mas numa pedagogia divina. Eles ensinavam a gravidade do pecado, a necessidade de expiação e a centralidade da comunhão com Deus. Os profetas já advertiam contra a confiança acrítica nos ritos se não houvesse conversão do coração (cf. Os 6,6; Is 1,11–17). Como explica o Novo Testamento, os sacrifícios dos animais “recordavam” o pecado mas não podiam consumar a redenção perfeita (cf. Hb 10,1–4).
E, segundo, é importante termos em mente que o Antigo Testamento e a história inicial do povo israelita são um caminho em direção a Cristo, a perfeita redenção dos homens e a perfeita reparação dos nossos pecados. Então o Antigo Testamento é uma preparação e um caminho do povo israelita, e todo o Antigo Testamento deve ser lido e compreendido em direção a Cristo. Esses sacrifícios imperfeitos feitos no Levítico eram uma preparação e direção ao sacrifício perfeito de Cristo na Cruz.
Então, para reparar o pecado, que é uma ofensa a Deus Infinito, não bastam sacrifícios de animais, quantias em dinheiro etc. Para reparar e redimir o homem com Deus, é preciso de um sacrifício Infinito para redimir o homem, o que é impossível para o próprio homem, que adquiriu uma dívida infinita.
Neste sentido, Santo Anselmo, no seu argumento Cur Deus Homo, confronta a pergunta: como a desordem do pecado, que ofende a Deus, pode ser reparada? Santo Anselmo explica que o pecado exige uma satisfação proporcional à ofensa; a criatura humana não pode oferecer a satisfação devida, porque a ofensa é contra o Senhor Infinito. Por isso, segundo Santo Anselmo, só Deus que se encarna e se dá livremente (Cristo) pode oferecer a reparação adequada.
Então Deus, em sua Infinita Misericórdia se encarnou homem e se entregou; o próprio Deus Infinito e sem nenhuma mancha do pecado se sacrificou para redimir a ofensa do pecado ao Deus Infinito. Foi esse um dos aspectos que Cristo fez na Cruz, redimindo o homem dos seus pecados. O Catecismo da Igreja Católica nos explica bem essa questão:
CIC 614. Este sacrifício de Cristo é único, leva à perfeição e ultrapassa todos os sacrifícios (490). Antes de mais, é um dom do próprio Deus Pai: é o Pai que entrega o seu Filho para nos reconciliar consigo (491). Ao mesmo tempo, é oblação do Filho de Deus feito homem, que livremente e por amor (492) oferece a sua vida (493) ao Pai pelo Espírito Santo (494) para reparar a nossa desobediência.
CIC 615. «Como pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão justos» (Rm 5, 19). Pela sua obediência até à morte, Jesus realizou a acção substitutiva do Servo sofredor, que oferece a sua vida como sacrifício de expiação, ao carregar com o pecado das multidões, que justifica carregando Ele próprio com as suas faltas (495). Jesus reparou as nossas faltas e satisfez ao Pai pelos nossos pecados (496).
CIC 616. É o «amor até ao fim» (497) que confere ao sacrifício de Cristo o valor de redenção e reparação, de expiação e satisfação. Ele conheceu-nos e amou-nos a todos no oferecimento da sua vida (498). «O amor de Cristo nos pressiona, ao pensarmos que um só morreu por todos e que todos, portanto, morreram» (2 Cor 5, 14). Nenhum homem, ainda que fosse o mais santo, estava em condições de tornar sobre si os pecados de todos os homens e de se oferecer em sacrifício por todos. A existência, em Cristo, da pessoa divina do Filho, que ultrapassa e ao mesmo tempo abrange todas as pessoas humanas e O constitui cabeça de toda a humanidade, é que torna possível o seu sacrifício redentor por todos.
Por isso Jesus Cristo é chamado o Cordeiro de Deus, que, diferente dos outros cordeiros do Antigo Testamento, que eram imperfeitos e entregues pelos homens para uma reparação imperfeita dos pecados, Jesus Cristo é oferecido pelo próprio Deus e totalmente perfeito, sem mancha do pecado, para uma reparação perfeita dos pecados.
É importante ressaltar que a expiação e a reparação da humanidade do pecado é apenas um dos aspectos realizados por Jesus Cristo na Cruz. Essa formulação ressalta a dimensão jurídica-moral da redenção, porém sempre temos que manter em mente que o mistério da Cruz é bem maior; a Cruz é também ato de amor e vitória sobre o mal. Além disso, na Crucificação, Cristo morreu em nosso lugar (dimensão vicária); é também um resgate que nos liberta da escravidão do pecado e da morte (cf. Mc 10,45), e, acima de tudo, a expressão do amor do Pai que entrega o Filho, e do Filho que se entrega livremente. Todos esses aspectos são extremamente profundos que daria para escrever vários livros sobre eles.
Bibliografia e notas
Notas
- Levítico 1–7;
- Santo Anselmo, Cur Deus Homo, especialmente a exposição da satisfação.
- Catecismo da Igreja Católica, §§599–618. CIC
Leituras recomendadas
- Santo Anselmo, Cur Deus Homo
- Catecismo da Igreja Católica, §§599–618; CIC